domingo, 22 de maio de 2016

O CANTO DO GALO....


Nunca mais esquecer

Pessoas são traídas por batons na cueca, delatores premiados e vices vigaristas. Eu fui traído por um sonho

Bruno Cantini/Atlético
Ela foi morar comigo a gente nem se conhecia bem, só seis meses de namoro. Eram tempos de vacas magras. Magérrimas, anoréxicas. Em 2006, as vacas estavam em situação de faquir: o Galo tinha caído para a Segunda Divisão e flertava com a zona de rebaixamento para a Série C. A Fabi é filha de um inglês, cuja família era fã do críquete e não do futebol, e de uma japonesa que era tipo o Emerson Conceição – não sabia o que era uma bola. A Fabi, nascida no Rio e criada em São Paulo, não sabia da existência do Atlético. E eu, pra não parecer um idiota, escondia dela um terrível segredo: o Galo era o meu verdadeiro amor, e ele estava morrendo.

Pessoas são traídas por batons na cueca, delatores premiados e vices vigaristas. Eu fui traído por um sonho. Certa madrugada me vi num estádio completamente vazio, um Canindé piorado, um Caio Martins largado às traças, com seu concreto puído e suas grades convidando os fantasmas à iminente tragédia. Lá embaixo, naquele pasto, desenrolava-se uma sofrível peleja. Podia ser o Desafio ao Galo, o mítico campeonato de várzea criado pela Record nos anos 70. Mas, para o meu desespero, era o Galo propriamente dito. Abandonado por sua torcida. Morrendo diante dos meus olhos, como um Sete de Setembro em seu derradeiro compromisso.

Meu coração angustiado procurava na arquibancada um cúmplice dessa minha desgraça, uma testemunha que me amparasse no apagar das luzes. Não havia. Eu tava sozinho. “E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José?”. Eu não precisava acordar de sonhos intranquilos transformado numa barata, como Gregor Sansa. Dormindo mesmo eu já era uma, esmagada no concreto daquele sub-Canindé, abatido finalmente pelo crime passional – o Galo tinha morrido, e eu preferia morrer com ele.

Acordei no meio da madrugada chorando toda a desgraça da minha vida desde 1977. Meu pranto continha o pênalti desperdiçado por Cerezo, o joelho do Rei, a final perdida em 1980, a bola que entrou e o juiz não viu em 1985, a Copa União, a final de 1999, o Simon. Eu gritava e me debatia como a amante que chuta o balde na hora em que vai descer o caixão. Acocorado na borda da cama, ainda sonâmbulo, eu pedia socorro. Quando finalmente voltei à razão, livre daquele encosto que havia baixado, a Fabi me olhava com os olhos da mulher do Cunha. Ao ouvir minhas explicações, essa coisa de Galo e tal, pensou: “Casei com um psicopata”.

Depois dessa noite eu entrei em coma, e assim permaneci até a madrugada da última quinta-feira. Um coma profundo, do qual não guardo lembrança e nenhuma sensação. Abri os olhos depois de longos 10 anos, e vi a Fabi na minha frente. Antes de proferir as sábias palavras de alguém que morreu mas está vivo, fui direto ao que importa: “E o Galo, Fabi?”. Ela pegou na minha mão, olhou os meus olhos, e eu gelei. No fundo, já sabia que o estado era terminal. Aguardava apenas a declaração oficial, o atestado, a causa mortis.

Então ela começou: “Fred, o Galo é um dos maiores times do mundo. O Galo é uma das maiores coisas do mundo! O Galo ganhou uma Libertadores da América – o nosso goleiro pegou um pênalti aos 48 do segundo tempo, e a gente ganhou. Ele se chama São Víctor, e é o melhor goleiro da nossa história. O Galo ganhou uma Copa do Brasil. Tirou o Corinthians e depois o Flamengo – eles já estavam classificadaços, mas a gente ganhou! O Galo ganhou do Cruzeiro na final. O Ronaldinho Gaúcho jogou no Galo. Ele torce pro Galo. Eu torço pro Galo, minha mãe torce pro Galo, meu pai, até o Gilvan torce pro Galo. Seu filho mais novo chora nas vitórias do Galo e canta o hino nas derrotas, não tem explicação. A gente acabou de ser desclassificado pelo São Paulo na Libertadores, sinto muito. Mas o Robinho joga no Galo, o Pratto, o Cazares. E o Galo, meu amor, vai ganhar o próximo Brasileiro”.

Enquanto a Fabi falava, eu fechei os olhos pra imaginar como tinha acontecido tudo aquilo. Eu precisava registrar no meu cérebro, que acabara de pegar no tranco. Precisava gravar, pra nunca mais esquecer.

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